O que o Alcorão diz sobre a Poligamia? (Sob a Perpectiva Legal)

O que o Alcorão diz sobre a Poligamia? (Sob a Perpectiva Legal)
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Não foi o Islam que iniciou a poligamia, ao contrário, a poligamia era a prática costumeira difundida na Arábia pré-islâmica[i], que continuou nas eras posteriores, distorcendo a revelação real do Alcorão. A prática tradicional da poligamia é uma das práticas patriarcais que criam discriminação contra as mulheres, indicando o fato de que a igualdade entre homens e mulheres nunca existiu de fato na sociedade. Ao interpretar os versículos do Alcorão relacionados à poligamia, juristas pertencentes a diferentes escolas de pensamento, apresentaram diversas observações sobre a massiva permissão e a aprovação restritiva da poligamia. O versículo conhecido como ‘versículo da poligamia’, diz:


“E, se temeis não ser equitativos para com os órfãos, esposai as que vos aprazam das mulheres: sejam duas, três ou quatro. E se temeis não ser justos, esposai uma só, ou contentai-vos com as escravas que possuís. Isso é mais adequado, para que não cometais injustiça.” (An-Nissa, 4:3)

Os juristas clássicos ou tradicionais interpretaram esse versículo como permitindo que um homem se casasse com até quatro esposas, enquanto os modernistas, bem como os contextualistas[ii], observaram que esse versículo legisla a monogamia e a permite apenas em circunstâncias excepcionais. Será prudente notar que os contextualistas enfatizam o contexto e o pano de fundo do versículo. Este versículo realmente indica a garantia do tratamento adequado para as órfãs, não significa exatamente a permissão geral da poligamia para os homens. Durante o período da revelação, alguns tutores do sexo masculino, responsáveis ​​por administrar a riqueza de crianças órfãs do sexo feminino, muitas vezes se envolveram na administração injusta ou apropriação indevida da riqueza dessas crianças. Para evitar tal má gestão, o Alcorão permitiu que eles se casassem com aquelas órfãs. Embora permitindo o casamento, o Alcorão, por um lado, limitou o número de casamentos a quatro e, por outro lado, considerou que “a responsabilidade econômica pela manutenção da esposa contrabalançaria o acesso à riqueza da mulher órfã por meio da responsabilidade da administração”. A injunção do Alcorão visava melhorar as condições de segmentos mais fracos da sociedade, como os órfãos e pobres em geral.

O principal argumento dos modernistas é que, embora o Alcorão aparentemente permitisse a poligamia, acrescentou um fator moral no sentido de que se um homem não pode fazer justiça entre as co-esposas, então ele deve ter apenas uma. O significado de justiça não implica apenas igualdade em termos de nutrição, moradia e vestimenta, mas, refere-se também à igualdade no amor, na afeição e na estima, o que é impossível de ser executado por um ser humano. Em apoio ao seu argumento, os modernistas se debruçaram sobre o versículo:

“E não podereis ser justos com vossas mulheres, ainda que sejais zelosos disso…” (An-Nissa, 4:129)

A interpretação deste versículo juntamente com o versículo anterior da poligamia indica que a injunção do Alcorão é funcional em dois níveis:

  1. Um nível legal – onde a poligamia limitada era permitida em circunstâncias excepcionais.
  2. Outro nível moral – onde o Alcorão aparentemente esperava que a sociedade se transformasse com o passar do tempo.

Os juristas clássicos, no entanto, não consideraram a exigência de “justiça” como uma condição precedente para um casamento polígamo, mas, deixaram que a questão fosse decidida pelo julgamento privado de cada marido, individualmente. Sua compreensão do versículo do Alcorão, dando supremacia às decisões dos maridos pontualmente, refletia a noção de que os homens são superiores às mulheres. Para essa conclusão eles também se basearam no seguinte versículo:

“E elas têm direitos iguais às suas obrigações, convenientemente. E há para os homens um degrau acima delas…” (al-Baqara, 2:228)

Ao interpretar este versículo, os tradicionalistas preferiram enfatizar a última parte do versículo que dá superioridade aos homens sobre as mulheres, desconsiderando a paridade entre homens e mulheres. Os contextualistas, embora neguem a interpretação dos tradicionalistas, construíram uma interpretação do trecho: ‘há para os homens um degrau acima delas’ como uma reflexão quanto ao estatuto legal de homens e mulheres no contexto passado, o que não deveria ter implicações legais no contexto moderno. Ignorando a importância do contexto na interpretação dos versículos do Alcorão, os juristas conservadores sustentam que a poligamia como uma resposta a várias situações de necessidade é uma opção melhor do que a monogamia praticada no ocidente, onde leis positivas deixam brechas dando aprovação tácita para relações sexuais extraconjugais. Aqui, pode-se argumentar que os deméritos das leis positivas não podem ser usados ​​como um escudo para justificar a poligamia porque a permissão total da poligamia não reflete a verdadeira essência da injunção do Alcorão.

Embora haja diferença de opiniões sobre a poligamia, a interpretação contextual dos versículos do Alcorão mencionados acima sugere que uma licença irrestrita para a poligamia é contrária ao espírito do Alcorão. Ao adotar interpretações contextuais das injunções do Alcorão, as comunidades islâmicas impuseram restrições aos casamentos polígamos em vários países, incluindo Paquistão, Bangladesh, Síria, Iraque e Marrocos e até há um exemplo de abolição completa da poligamia como no caso da Tunísia, por virtude da prática de ijtihad. Os reformadores tunisianos, em virtude da prática da ijtihad, destacaram que, além da capacidade financeira do marido para manter mais esposas, a injunção do Alcorão também exige um tratamento imparcial irrestrito entre as co-esposas. Esta injunção do Alcorão não deve ser tomada como uma instrução moral, mas como uma condição precedente legal que requer a prova de imparcialidade entre as co-esposas por meio de evidências adequadas. Os reformadores sustentaram que sob as condições sociais e econômicas modernas, a estipulação de tratamento imparcial era impossível de cumprir e, portanto, declararam a proibição da prática da poligamia sob a Lei Tunisiana de Personal Status de 1957.

Em Bangladesh, de acordo com a Lei das Leis da Família Muçulmana (MFLO) de 1961, a prática de casamentos polígamos foi restringida pela imposição de poucas condições que incluem a exigência de obter o consentimento da esposa preexistente e obter permissão do Conselho de Arbitragem. Além da restrição e proibição legislativa, os juízes interpretaram o versículo corânico da poligamia progressivamente, seja restringindo, proibindo ou condenando a prática da poligamia em um grande número de decisões judiciais (casos, entre outros, incluem Jesmin Sultana vs. Muhamamd Elias 17 BLD 1997 4, Amena Khatun vs. Serajuddin Sardar 17 DLR, (1965) 687). Os juízes também enfatizaram a condição de tratamento igual e imparcial que deve ser cumprida pelo marido que deseja ter mais de uma esposa.

No caso Jesmin Sultana, a Divisão do Tribunal Superior (HCD) recomendou que a Seção 6 do MFLO fosse revogada e substituída por uma seção que proíbisse totalmente a poligamia. Ao chegar a esta decisão pragmática, o tribunal afirmou que os juristas e acadêmicos muçulmanos são quase unânimes na visão de que é praticamente impossível lidar com as co-esposas de forma justa, e assim a injunção do Alcorão de que uma segunda esposa pode ser tomada sob uma condição específica é praticamente uma proibição. Observa-se que embora a Divisão de Apelação não tenha concordado com a decisão do HCD, a observação do HCD a respeito da poligamia carrega bastante significado e pode funcionar como uma diretriz significativa em termos de interpretação dos casos de poligamia.

A discussão acima leva à proposição de que a mensagem subjacente do Alcorão Sagrado em relação à injunção da poligamia desconsidera quaisquer práticas discriminatórias contra as mulheres em virtude da prática da poligamia. Esta proposição do Alcorão corresponde ao princípio de igualdade e não discriminação do direito internacional dos direitos humanos. Além disso, a imposição da exigência de justiça no caso de tomar uma segunda esposa implica que a mensagem do Alcorão não apenas está em conformidade com o princípio da igualdade, mas também é significativa para garantir uma vida digna para as mulheres.

Por Mohammed Golam Sarwar
O autor é Professor assistente do Departamento de Direito, Universidade de Dhaka
Fonte: https://www.thedailystar.net


[i] Nota da tradutora: e em todas as sociedades ao redor do mundo, em todos os tempos.

[ii] Aqui, permito-me usar este termo como referência àqueles que afirmam que o conhecimento é relativo ao contexto no qual está inserido


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