Morte – A Visão Islâmica
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A Morte como Ponte para a Verdadeira Vida
A morte, na perspectiva islâmica, não é uma interrupção abrupta do ser, mas o início da verdadeira jornada. O mundo terreno, por mais concreto que pareça, é apenas uma fase de teste e transição. O Alcorão diz:
“Aquele que criou a morte e a vida para testar quem de vós é o melhor em obras. E Ele é o Todo-Poderoso, o Perdoador.” (Surat al-Mulk, 67:2)
Este versículo já aponta que a morte é criação divina, não uma tragédia ou um erro, mas parte essencial da ordem cósmica estabelecida por Allah.
Os primeiros sábios do Islam tinham plena consciência de que a lembrança da morte (dhikr al-mawt) é um dos maiores purificadores da alma. Al-Ḥassan al-Baṣri (m. 110 AH) dizia:
“Ó filho de Adão! A morte não deixa ninguém, então sê vigilante. Por Allah! Nunca viste um morto que voltasse ao mundo e se arrependesse, mas os vivos sempre se arrependem sem agir!” (Ibn al-Jawzī, Sifat al-Safwa, vol. 2, p. 132)
A consciência da morte, portanto, não conduz ao desespero, mas ao despertar.
A Morte e o Além – O que Diz o Islam?
A realidade da morte é um dos pilares do entendimento espiritual islâmico. O Alcorão é repleto de referências à morte, à sepultura, à ressurreição e ao encontro com Allah.
“Toda alma provará a morte. Depois, a vós retornareis.” (Surat al-‘Ankabūt, 29:57)
E o Profeta ﷺ explicou em detalhes o processo da alma após a morte. O extenso hadith narrado por Al-Bara’ ibn ʿAzib (que Allah esteja satisfeito com ele), registrado por Ahmad (hadith nº 18534), descreve como a alma do crente é recebida com honra pelos anjos, enquanto a do descrente é tratada com dureza. Ibn Qayyim al-Jawziyyah (m. 751 AH), ao comentar esse hadith, afirmou:
“Este é um dos mais grandiosos relatos sobre a realidade da vida após a morte, pois mostra o destino da alma antes da ressurreição e evidencia que a vida no túmulo é uma continuação consciente.”(Ibn Qayyim, Kitab al-Ruh, p. 58)
Além disso, o momento da morte é o início de uma nova fase de provações (fitnah al-qabr), das quais o Profeta ﷺ nos ensinou a buscar proteção:
“Busquem refúgio em Allah contra o castigo da sepultura.” (Bukhari, 1377; Muslim, 588)
Segundo Ibn Taymiyah (m. 728 AH), a prova no túmulo é uma extensão da vida responsável:
“A alma é provada de acordo com seu conhecimento e obras nesta vida. Quem conheceu Allah, Seu Mensageiro e seguiu a Verdade, terá firmeza na sepultura. Do contrário, vacilará.”(Majmu’ al-Fatawa, vol. 4, pág. 262)
A firmeza mencionada por Allah no Alcorão:
“Allah fortalece os que creem com firmeza na vida terrena e na derradeira…” (Surat Ibrahim, 14:27)
é aplicada, como explica Ibn Kathir, à provação no túmulo: um consolo para os crentes.
Relevância dessa Cosmovisão na Sociedade Contemporânea
A modernidade tenta apagar a morte, terceiriza o luto e remedia o sofrimento. Isso gera uma sociedade emocionalmente frágil, que vê a morte como um colapso, e não como parte da ordem divina.
O Islam, ao contrário, acolhe o sofrimento com espiritualidade e esperança. O próprio Profeta Muhammad ﷺ, ao perder seu filho Ibrahim, chorou, mesmo sendo o mais amado por Allah. Disse:
“Os olhos vertem lágrimas e o coração se entristece, mas não diremos senão o que agrada ao nosso Senhor. Ó Ibrahim, por tua separação estamos tristes.” (Bukhari, 1303)
Imam al-Nawawi, ao comentar este hadith, escreveu:
“Isso prova que a tristeza não anula a paciência nem a aceitação do decreto divino. A verdadeira submissão a Allah permite sentir dor sem cair em desespero.” (Sharḥ Ṣaḥiḥ Muslim, vol. 6, pág. 30)
A morte, portanto, não é um tabu. É uma professora silenciosa, como dizia Ibn ʿUmar (que Allah esteja satisfeito com ele):
“Se viveres até a manhã, não esperes a noite. E se viveres até a noite, não esperes a manhã. Aproveita tua saúde antes da doença, e tua vida antes da morte.” (Bukhari, al-Adab al-Mufrad, 78)
A lembrança da morte liberta o coração dos apegos excessivos ao mundo e torna o crente mais presente, mais sensível ao tempo, mais gentil com os outros, pois tudo é breve.
A Dor da Perda é Natural
O Islam não demoniza a dor. Ao contrário, reconhece que a dor é parte da natureza humana. Allah descreve o Profeta Ya’qub (Jacó) chorando até a cegueira por causa do desaparecimento de seu filho Yusuf (José):
“E seus olhos tornaram-se brancos de tristeza, pois estava profundamente entristecido.” (Surat Yūsuf, 12:84)
Essa dor, apesar de intensa, não foi censurada. Ibn Kathir comenta que a tristeza de Ya’qub era humana, mas ele manteve sua confiança em Allah.
O Imam Ibn al-Qayyim resume lindamente:
“A paciência verdadeira não significa ausência de dor, mas firmeza diante dela, sem revolta contra o Decreto.” (Ibn al-Qayyim, ʿUddat al-Ṣabirin, pág. 75)
Assim, chorar, lamentar, sentir falta… tudo isso é natural. O problema é quando se perde a esperança, e isso é justamente o que o Islam combate. O crente sabe que:
- O mundo é efêmero.
- A dor passará.
- O reencontro virá.
“E se Meus servos te perguntarem sobre Mim, por certo, estou próximo. Atendo ao apelo do suplicante quando Me invoca.” (Surat al-Baqarah, 2:186)
Islam e Cristianismo Frente à Morte
Tanto o Islam quanto o Cristianismo compartilham a ideia de que a morte não é o fim. Ambas as tradições falam de um mundo eterno, de acerto de contas e da misericórdia divina. Ambas reconhecem a alma como entidade imortal que retornará ao seu Criador.
A principal diferença está no entendimento do juízo e da intermediação divina. Mas, em termos existenciais, ambas as fés oferecem consolo e propósito para enfrentar a perda. Ambas ensinam que há algo maior que a dor, que há uma razão para a separação, e que há um Deus que vê e compreende tudo.
Como dizia o grande sábio islâmico al-Fuḍail ibn ʿIyaḍ:
“O mundo é uma prisão para os crentes e um paraíso para os ímpios. O verdadeiro descanso está apenas no encontro com Allah.” (Ibn al-Jawzi, Ṣifat al-Ṣafwa, vol. 4, pág. 91)
Que sejamos dos que lembram a morte não por medo, mas por sabedoria, e dos que vivem com significado para morrer em paz.
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